quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Rio e a Sua História

Aristides Almeida Rocha

A importância do Rio Tietê para o Brasil e em particular para São Paulo fica evidenciada ao se analisarem as várias referências feitas a ele por historiadores, geógrafos, técnicos e cientistas, poetas e prosadores e, sobretudo, pelo depoimento do homem comum que, desde a fundação da cidade de São Paulo e sua expansão para o interior do território, acostumou-se a conviver com o rio.

Conforme Maurício Pardé em seus trabalhos “Fleuves et Rivières”, um rio representa uma individualidade geofísica, viva e agente, sendo, talvez, tão complexo quanto é o ser humano: como este, tem lá os seus estágios cíclicos na vida: nasce, cresce, atinge a maturidade e passa pela decrepitude.

O padre Manuel da Nóbrega aconselhava já no período quinhentista que “todos deveriam fugir da penúria de Santo André onde não havia peixe nem farinha e, se chegassem ao Rio Piratininga (um dos primitivos nomes do rio), teriam tudo e sossegariam”.

Mas desde que Martim Afonso de Souza o reconheceu como “um rio grande que enveredava pelo continente”, o Rio Tietê foi unanimemente apontado como um fator primordial na interiorização de São Paulo e do Brasil. Assim, Cassiano Ricardo enfatizou que o Tietê “era uma seta apontada para o sertão, a indicar-lhe o caminho”; Capistrano de Abreu ressaltou que a função dos Rios São Francisco e Tietê era da integração nacional; Afonso E. Taunay ao dissertar sobre o rio insistiu que seu nome está “indescritivelmente ligado à história da constituição territorial do Brasil”; Mello Nóbrega proclamou que às águas amarelas e quietas do Tietê despertam sonhos de aventuras e riquezas” e João Vampré assinalou: “a história do Tietê é a narrativa áspera e dramática dos esforços feitos para dominar e vencer obstáculos gigantescos que ele levanta diante dos passos do conquistador audaz”.

Em resumo, foi o Rio Tietê que propiciou algumas Bandeiras e as Monções, ou Descimentos, até que o ciclo do muar, o advento do barco a vapor e os caminhos terrestres passassem a dominar o cenário da história. Essas expedições viriam enriquecer e alargar os horizontes da nação brasileira.

O rio, embora as dimensões e proporções diminutas se comparado a outros rios que compõem diversas bacias hidrográficas em território brasileiro e do exterior, teve, além de sua participação no contexto histórico, um papel relevante, abastecendo de pescado a provinciana São Paulo até meados do século XX, e esteve integrado à vida dos cidadãos paulistanos proporcionando – em suas então bucólicas margens – o lazer, a prática de esportes e recreação; além de constituir cenário inspirador à amores e sensibilidades poéticas. Ele serviu ainda à expansão da cidade contemplando a população com o primitivo material para a construção dos primeiros edifícios, e suportou o transporte de habitantes e mercadorias.

Paralelamente, de modo gradativo, incipiente no início, acentuado a partir dos anos 1950, foi sofrendo um processo de poluição, transformando-se em veículo receptor e transportador de resíduos domésticos e industriais que viriam provocar a quase completa deterioração de suas águas.

Represado em muitos trechos o Tietê teve o seu regime hídrico modificado de lótico para lêntico, sofrendo também em certos trechos a influência de dragagens diárias e processos de retificação. Atualmente quase nada resta emerso das cerca de quarenta principais corredeiras, cachoeiras e saltos originalmente existentes. O que levou milhões de anos para se formar, envolvendo espaço de tempo de eras e períodos geológicos foi, pela ação antrópica tecnológica, totalmente modificado em alguns poucos anos.

Ao longo do Tietê, na extensão de 1.100 quilômetros do rio – que nasce a 25 quilômetros de Salesópolis, a 780 metros de altitude, nos contrafortes da banda ocidental da Serra do Mar e deságua no Rio Paraná, na divisa com o Estado do Mato Grosso – as margens foram dizimadas, surgindo zonas urbanas de mais de sessenta cidades ribeirinhas , incluindo a Região Metropolitana, com mais de 450 mil estabelecimentos comerciais e industriais e, 18 milhões de habitantes.

Contudo, apesar de poluído e contaminado por toda sorte de poluentes, o rio quase moribundo ainda insiste em ser partícipe do desenvolvimento da metrópole paulistana, permitindo que suas águas sejam utilizadas na produção de energia elétrica.

No passado, ainda que o rio fosse incriminado pelo fato de provocar inundações e facilitar a disseminação de moléstias, o equilíbrio existia, pois tais situações eram esporádicas e localizadas. Foi a atuação do homem que fundamentalmente alterou as condições do primitivo ecossistema e, de modo gradativo, levou a um acomodamento da sociedade na qual os cidadãos, paradoxalmente responsáveis pelo progresso, foram também aqueles que concorreram para levar o rio à situação de quase “inadimplência ambiental”, como enfatizo no livro "Do Lendário Anhembi ao Poluído Tietê".

Atualmente não é mais possível conviver com o Rio Tietê lembrando as águas repugnantes e malcheirosas do Rio Aqueronte do Inferno de Dante.

A população despertou, seja pela nova consciência trazida com o ensino da ciência ecológica e seus conceitos básicos relacionados à problemática ambiental (o que permite adjetivá-la de ciência ambiental) e a ênfase maior quanto aos impactos das ações antrópicas que é dada nos ensinos formal e informal; seja pela consciência isolada de alguns estudiosos e cientistas do passado; ou seja ainda pela ação moderna dos ambientalistas estruturados nas Organizações Não Governamentais-ONGs, e pressão exercida através da mídia catalisando o momentâneo entusiasmo dos cidadãos e a nova preocupação política.

Necessário é, pois, intensificar o pouco que já foi realizado e está sendo feito, canalizar novos investimentos, provocar um mutirão se preciso para que o Rio Tietê volte a ser como o Rio Eunoe do Inferno de Dante, isto é, o rio de águas límpidas à entrada do Paraíso.

O atual cenário degradado não está mais sendo suportado por todos que circulam e gravitam ao redor do rio na região metropolitana; como afirmou o filósofo Ludwig Fewrback, “a água é o primeiro espelho do homem”.

No ambiente hídrico o ser humano pode pensar na sua imagem refletida e, embora a água não seja o símbolo da purificação, ela é no entanto, o próprio elemento eficiente da purificação.

Rémy de Gourmont em Promenades Philosophiques ao se referir aos rios enfatiza: “O rio é uma pessoa. Tem nome. Este nome é muito velho, porque o rio, ainda que muito moço, é muito antigo. Existia antes dos homens e antes das aves. Desde que os homens nasceram, amaram os rios, e tão logo souberam falar, lhes deram nomes”.

Qual teria sido a origem do nome desse rio, paulistano e paulista? Segundo a arqueóloga Solange Caldarelli “há pelo menos seis mil anos, populações procuram a bacia do Rio Tietê e dele se utilizam”.

Os primitivos nomes do rio obviamente só começam a surgir gravados nos antigos relatos e mapas da época da fundação da cidade. Muitas corruptelas e variações tais como Anhembi, Agembi, Aiembi, Anem by, Aniembi, Anhambi, Niembi e outras tantas designações são comuns nos antigos documentos.

A tradução desses vocábulos para a língua portuguesa é discutível e dependendo dos autores, ora quer referir-se as aves como o nhambu ou a perdiz européia, ora a uma erva rasteira de flores amarelas, “nhambi”, utilizada como condimento pelos nativos, ou mesmo na rudimentar odontologia de então, e ora como rio dos veados (anhangi).

Outras vertentes dizem que Anhembi é corruptela de i-em-bi, tendo o "i" o significado de não-liso, altos e baixos, obstáculos; o "e" representa a saída, a barra, a foz, e o “bi” refere-se a levantar, alçar, indicando um rio de leito acidentado; alguns entendem que Anhemby ou Añemby deva indicar a parte baixa do rio.

Quanto ao vocabulário Tietê, é tido pelo Padre Anchieta como referência à “madre ou mãe do rio”; muitos acham poderá ser uma palavra derivada de tié ou tei-tei, idioma tupi que designava uma ave tanagrídea ou fringilídia – canário de cor amarela. Tietê poderia também significar água volumosa e corrente ou água de mau gosto, ruim, de qualidade inferior.O certo é que ambos os nomes, Anhembi e Tietê, concomitantemente, persistiram por longo tempo.

Algumas crônicas de 1730, estudadas por Taunay, parecem dar conta de que o nome Tietê designava o rio desde a nascente até a cidade de Salto, e Anhembi dessa cidade à desembocadura no rio Paraná, após percorrer cerca de 1.100 quilômetros em território paulista. A dualidade de nomes persistiu até por volta de 1840.

O Rio Tietê venerado pelos indígenas que harmonicamente com ele conviveram, praticando seus rituais religiosos em uma intimidade que ia desde a recreação à higiene pessoal e à nutrição foi, a medida que predatoriamente o território ia sendo ocupado, levado a uma tal situação que já em 1820 era motivo de alerta de autoridades como os irmãos Andrada e Silva. Eles estavam preocupados com os Rios Tamanduateí e Tietê, “sem margens nem leitos fixos, sangrados em toda parte por sarjetas que formam lagos e pauis que inundam esta bela planície, e o que é mais para lastimar é que quase todos esses males não são obra da natureza, mas sim o resultado da ignorância dos que quiseram melhorar o curso desses rios”.